Reportagens

“A floresta sem gestão vai arder”

Henrique Pereira dos Santos diz que grande parte do país não tem vocação florestal, devido ao custo da gestão e do risco de fogo associado.

Henrique Pereira dos Santos

O arquiteto paisagista Henrique Pereira dos Santos considera imperioso reduzir o risco do investimento associado ao fogo e sugere o fogo controlado, a expansão do pastoreio e a produção florestal industrial, como mecanismos mais sustentáveis de gestão de combustíveis “do que andar a pagar a pessoas para cortar mato”.

Defensor de compensações para os produtores florestais pelos serviços dos ecossistemas não remuneráveis no mercado, o especialista em conservação da natureza considera que as restrições regulamentares à plantação de eucalipto “dão mais oportunidades à pior gestão”. “O eucalipto não se expande mais por razões edafoclimáticas. E já não há muito mais área para expandir com boas produtividades”, afirma em entrevista à “Produtores Florestais”.

É possível fazer conservação da natureza e, em concreto, da floresta, prescindindo do apoio dos grandes produtores florestais?
É. E é feita em muitos sítios. Difícil é fazê-la sem recursos. O apoio pode vir dos grandes produtores florestais, dos consumidores, dos doadores ou dos contribuintes. Mas é preferível contar com os produtores florestais.

Tratando-se de um bem coletivo, a conservação da natureza não é uma das atribuições do Estado?
O Estado deve ter papel relevante no assegurar do bem comum que não resulta da livre interação das pessoas. A conservação da natureza, não sendo uma incumbência central do Estado, não é lucrativa, salvo exceções, como o Kruger Park (África do Sul). Por isso, ou a sociedade se organiza, como acontece com a Natuurmonumenten (Países Baixos) e o National Trust (Reino Unido), ou o Estado intervém.

“Não temos falta de floresta em Portugal. Provavelmente até temos floresta a mais, incluindo uma área excessiva com falta de gestão. Se a plantação não vai ter gestão associada, vai arder.”

E como podem os governos intervir na gestão dos ecossistemas sem pagarem a fatura nas eleições? Na prática, em Portugal, o que está em causa é desviar verbas da Política Agrícola Comum (PAC) da agricultura para a floresta…
Sou contra a intervenção nos mercados, salvo em situações restritas. Os dinheiros da PAC não deviam servir para pagar a produção. Não faz sentido estarmos a condenar produtores agrícolas e florestais do Terceiro Mundo a uma pobreza maior porque financiamos os europeus. A PAC devia pagar os serviços que não são apreensíveis pelo mercado, como a biodiversidade, a regeneração do solo ou a gestão climática, nas componentes que são uma falha do mercado, como acontece com os fogos. A PAC devia estar orientada sobretudo para o pagamento dos serviços dos ecossistemas, sejam eles produzidos por produtores agrícolas, pelos produtores florestais ou outros. Não é desviar dinheiro da agricultura para a floresta. É reorientar o dinheiro dos contribuintes para aquilo que os consumidores não pagam.

Deixar de pagar para plantar, privilegiando agora a gestão, foi uma boa opção do governo?
Claro que sim. Não temos falta de floresta em Portugal. Provavelmente até temos floresta a mais, incluindo uma área excessiva com falta de gestão. Se a plantação não vai ter gestão associada, vai arder.

A floresta portuguesa também tem conquistado terrenos agrícolas, como constatou um recente estudo europeu?
O termo “conquistar” traduziria a ideia de invasão nos terrenos agrícolas. O processo é o inverso: a floresta ficou com o que os outros não queriam. Não é uma conquista, mas sim uma herança. E tenho algum prurido em falar de área florestal, porque estamos a incluir matos, pastagens naturais e não, necessariamente, povoamentos florestais. Temos perdido povoamentos florestais, sobretudo de pinheiro. Tem havido expansão moderada de eucalipto e muito moderada de sobro.

“O único efeito das restrições regulamentares é a diminuição da qualidade de gestão. Só ligam à lei os que estão certificados. As restrições não cortam a expansão do eucalipto; dão mais oportunidades à pior gestão.”

Foi o retorno económico que levou à expansão do eucalipto na segunda metade do século XX?
A expansão foi bastante acentuada nos Anos 80 e, daí para cá, tem sido moderada…

… Também por restrições legais…
Não estou convencido disso. Não são determinantes. Como o Estado não fiscaliza, o efeito da legislação é reduzido. Além disso, parte da expansão não tem interação com a lei, ou porque são coisas muito pequenas ou porque vão acontecendo. Se me arder um pinhal, vou introduzindo uns eucaliptos, porque sempre me dá alguma coisa antes do próximo fogo. O único efeito das restrições regulamentares é a diminuição da qualidade de gestão. Só ligam à lei os que estão certificados. As restrições não cortam a expansão do eucalipto; dão mais oportunidades à pior gestão. O eucalipto não se expande mais por razões edafoclimáticas. Já não há muito área para expandir com boas produtividades. O eucalipto tem uma boa adaptação ao fogo. Nós temos um padrão de fogo à volta dos 12-15 anos e o eucalipto dá para fazer um corte entre os 9 e os 12. Ou seja, dá para fazer um corte entre dois fogos. O que significa que, investindo zero em gestão, é possível ter algum lucro. Ao contrário do pinheiro, o seu grande competidor natural, o eucalipto é compatível com algum rendimento, com o regime de fogo que temos. Um pinhal ardido obriga ao corte imediato e isso deixa os produtores nas mãos dos compradores. Isso não acontece com os eucaliptos. Por isso, diga o que disser a legislação, o eucalipto vai continuar a expandir-se. Não à velocidade dos Anos 80, quando houve política deliberada de expansão, mas vai, pois, para o pequeno proprietário, não há razão para isso não acontecer.

“O fogo controlado faz-se em determinadas condições meteorológicas para diminuir os combustíveis finos sem degradar o solo. Com humidade e vento adequados, não há destruição de matéria orgânica.”

Apesar da sua diversidade, diz-se que o potencial da floresta nacional está longe de ser aproveitado. Onde estão as melhores oportunidades?
Há menos potencial do que aquilo que se diz, mas há tantos a dizer isso que, provavelmente, sou eu que estou errado. Desvaloriza-se o custo da gestão florestal. Tenho discutido isto com pessoas ligadas à gestão do eucalipto e eles dizem que é preciso investir na gestão, porque vai dar resultado. Eu argumento que o modelo de exploração florestal das celuloses, que é rentável, não é aplicável a todo o território nacional. É muito mecanizado e tem oposição social. Grande parte do país não tem vocação florestal nenhuma, no sentido em que o custo de gestão é maior do que o rendimento. E o risco de fogo associado é elevadíssimo.  

A floresta de produção é incontornável na viabilização económica de largas partes do território?
Não tenho dúvidas sobre isso. O fator-chave é a gestão do fogo. Temos de reduzir o risco do investimento associado ao fogo. Se temos o padrão de fogo que temos, a orientação devia ser ter uma melhor gestão do fogo. Não é eliminar o fogo.

“Em vez de andarmos a responsabilizar os produtores florestais e obrigá-los a perder rendimento, temos de lhes pagar os serviços que não lhes pagamos, que são os serviços de ecossistemas não remuneráveis no mercado.”

Tem defendido que o fogo é um elemento natural com o qual temos de conviver. De que forma?
Vou passar a dizer que é um “processo natural”. Tenho utilizado “elemento” por referência aos quatro elementos clássicos gregos (terra, água, ar e energia/fogo). Mas, verdadeiramente, o fogo é um processo e está nos ecossistemas. Em Portugal, temos fogo a menos. Temos é fogo a mais nas alturas erradas e nos sítios errados. Precisamos de mais fogo, nos sítios certos, nas alturas certas e das formas certas. Temos de encontrar mecanismos de gestão de combustíveis finos economicamente sustentáveis. Contratar sapadores a mil euros por hectare arruína-nos a todos sem nenhum benefício social. Há mecanismos mais sustentáveis do ponto de vista económico e ambiental.

Um deles é o fogo controlado?
Um é o fogo controlado, outro é a expansão do pastoreio e outro é a produção florestal industrial. Qualquer um deles é mais sustentável do que andar a pagar a pessoas para cortar mato.

Em que consiste o fogo controlado? Há bons exemplos?
Por volta de 1973, [Edwin] Komarek andou no Parque da Peneda-Gerês a fazer fogo controlado, trazido pelo eng.º Moreira da Silva. Foi ele que levou João Bento e Francisco Rego a falarem no fogo controlado. Desde então, aumentou o número de pessoas qualificadas para o fazer e percebeu-se que, desde sempre, os pastores o fizeram. É preciso apoiá-los nessa atividade. Aliás, desde que não ponham em causa pessoas e bens, muitos dos fogos de primavera e outono, mesmo não controlados, não deveriam ser combatidos. Isso já começou a entrar na legislação e na política florestal portuguesa. O fogo controlado é, na prática, a aplicação do princípio de Paracelso que diz que a diferença entre um remédio e um veneno é a dose. Este princípio geral da Química é aplicável ao fogo. O fogo controlado faz-se em determinadas condições meteorológicas para diminuir os combustíveis finos sem degradar o solo. Com humidade e vento adequados, não há destruição de matéria orgânica. Doseando as ignições, de cima para baixo e contra o vento, consegue-se um fogo lento e controlado. Ao contrário dos fogos de verão, que, a partir de certo nível de intensidade, não podem ser extintos. Podem lá pôr os aviões e as mangueiras que quiserem; arderá enquanto houver combustível.

“Quase toda a nossa vegetação está adaptada ao fogo, no sentido darwiniano, não no sentido produtivo. (…) Até se especula que a cortiça é uma adaptação do sobreiro ao fogo.”

Há espécies florestais adaptadas ao fogo?
Praticamente todas, nas nossas condições. Os zimbros têm fraca adaptação e, por isso, os zimbrais, com alto valor de conservação e nenhum valor florestal, são sistemas que deviam ser especialmente protegidos. Aí, vale a pena fazer exclusão de fogo. De resto, quase toda a nossa vegetação está adaptada ao fogo, no sentido darwiniano, não no sentido produtivo. O que é normal, porque somos um grande produtor de fogos e sempre fomos. Até se especula que a cortiça é uma adaptação do sobreiro ao fogo. Há duas grandes famílias de adaptação ao fogo. Nos carvalhos e eucaliptos, a parte aérea morre, mas o indivíduo não e volta a rebentar. Os pinheiros, apesar de morrerem com o fogo, com 20 ou 30 anos deixam uma quantidade de sementes enorme, tal como as giestas.

Na sequência dos incêndios devastadores de 2017 foi criada a Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais. Que análise faz ao trabalho da AGIF?
Não sou capaz de fazer. Teria de estar a discutir o estado comatoso da nossa administração pública, um cenário ruinoso, no qual é pouco provável que haja bocadinhos que sejam excecionais. O nosso padrão de fogo é socialmente muito mau. Do ponto de vista da conservação, não há grande problema. Do ponto de vista produtivo, é mau para o setor florestal, mas para os outros também não é grande problema. O problema é social, por as pessoas não estarem disponíveis para aceitar este padrão de fogo, que lhes entra pela casa dentro, destrói infraestruturas, linhas elétricas. Se a sociedade não aceita isto, não é uma AGIF que vai resolver o problema. Em vez de andarmos a responsabilizar os produtores florestais e obrigá-los a perder rendimento, temos de lhes pagar os serviços que não lhes pagamos, que são os serviços de ecossistemas não remuneráveis no mercado.

O Estado obriga os proprietários a fazerem limpezas, mesmo quando a exploração do terreno não compensa…
É um erro de perceção de há bastantes anos e que se traduzia naquele slogan idiota “Portugal sem fogos depende de todos”. Não é verdade. Primeiro, porque Portugal sem fogos não existe. Segundo, porque não é pondo todos a limpar terrenos marginais que se resolve. As pessoas não são obrigadas a ir à ruína e a fazer gestão que não tem retorno. Ou fazem por altruísmo ou abandonam. Nenhum problema económico se resolve com regulamentação. Seria o mesmo que resolver o problema do emprego proibindo o despedimento.